Filmagem foi feita em campo de trabalhos forçados durante a 2ª Guerra.
Família descobriu material em SP e doou a museu nos EUA; veja trechos.
Quando migrou da Bulgária para o Brasil, em 1948, Licco Haim trouxe na bagagem um material que, décadas depois, revelou-se um tesouro histórico: filmes que mostram o dia a dia de judeus em um campo de trabalhos forçados na 2ª Guerra Mundial.
Judeu nascido na Áustria, Licco morava na Bulgária, que na época era aliada da Alemanha nazista. Em 1941, foi enviado para o campo de Lakatnik, a 40 km da capital, Sófia. Lá, participou da construção de uma estrada junto com outros judeus, ciganos e minorias discriminadas. Anos depois, migrou com a família para o Brasil, onde morou por 54 anos, até sua morte.
Fã de fotografias e filmes, Licco tinha uma câmera, algo incomum na época, e com ela registrou a sua rotina e a de outros prisioneiros.
As imagens, redescobertas pela família no ano passado, mostram cenas como os presos quebrando pedras, afiando ferramentas, explodindo dinamite, pegando sua ração de comida ou fumando e escalando montanhas nos momentos de folga (veja trechos no vídeo acima).
De acordo com o Museu da Memória do Holocausto dos EUA, que recebeu os filmes como doação, a gravação tem grande valor histórico por ser uma das poucas no mundo feitas sob a ótica de um prisioneiro, e não do regime que controlava o campo.
Não se sabe como Licco conseguiu captar as imagens dentro do local. Uma das hipóteses é que os próprios guardas tenham pedido que ele levasse a câmera para filmar cerimônias oficiais e ele aproveitou a oportunidade para gravar outros momentos do cotidiano.
Após seis meses, ele foi dispensado do campo de trabalhos forçados por suas habilidades com mecânica, necessárias para o país naquela época. Sete anos depois, quando a Bulgária já era comunista, migrou para o Brasil com a família e morou em São Paulo até 2002, quando morreu.
Surpresa
Os filmes perderam qualidade e ficaram incógnitos por muito tempo, já que a família não sabia exatamente do que se tratava. “Ele trouxe para o Brasil, o que significa que dava importância ao material. Mas depois disso nunca mais deu bola e raríssimas vezes tocou no assunto”, conta seu filho, Salvator Haim.
Em 2014, quando o sobrinho dele, Ilko Minev, escreveu um romance baseado na história do tio, a família redescobriu as latas com os filmes. “Não conseguimos ver o conteúdo, porque a lâmpada do projetor queimou. Foi o que preservou, porque esses filmes antigos se desgastam cada vez que são vistos. Eles estavam dentro de uma mala e não sabíamos o que fazer com eles”, conta Ilko.
Por sugestão de um amigo, a família levou os filmes para o museu em Washington, que os recuperou, remasterizou e usou como objeto de pesquisa.
Segundo Ilko, os diretores do museu tiveram uma surpresa quando perceberam do que se tratava o material. “Foi emocionante. Não esperávamos a recepção que tivemos. Aí que nos demos conta de que nossos filmes tinham um valor extraordinário”, afirmou.
Ao G1, Lindsay Zarwell, que trabalha no Arquivo de Filmes Steven Spielberg, pertencente ao museu, afirmou que as gravações de Licco são valiosas para o acervo da instituição e para ajudar a reconstruir a história dos judeus na Bulgária.
“Filmes assim são poderosos não apenas por seu significado histórico, mas também porque chamam a atenção para a vida das pessoas comuns. É importante capturar a história de indivíduos para revelar a verdade sobre os horrores do Holocausto na esperança de um futuro mais justo”, diz.
Os filmes de Licco estão sendo incorporados a um arquivo do museu que inclui entrevistas do diretor Steven Spielberg com sobreviventes de campos de concentração e por isso foi batizado com seu nome (veja três trechos neste link)
Nazismo, comunismo e vinda ao Brasil
Licco Haim mudou-se com o pai da Áustria para a Bulgária aos 18 anos. Entendido de mecânica, prosperou no ramo automobilístico até sua empresa ser confiscada pelo governo antissemita e ele ser enviado para o campo de trabalhos forçados, como quase todos os outros homens judeus.
Graças a uma ponte que aparece nas filmagens, os familiares conseguiram localizar onde ficava o campo. A estrada construída pelos prisioneiros existe até hoje. Na Bulgária, esses campos – inicialmente administrados pelo exército do país e depois pelos alemães – não eram de extermínio, como em outros países.
“Foi um regime duro, mas a intenção não era exterminar. Era explorar, mas não matar. Por isso a Bulgária começou e terminou a guerra com o mesmo número de judeus: cerca de 50 mil”, conta Ilko, que é búlgaro e veio para o Brasil já adulto, em 1970, por perseguições políticas do regime comunista.
Depois de ser liberado do campo, Licco conseguiu recuperar a empresa, mas ela foi tomada novamente em 1948, quando a Bulgária já era comunista. “Aí ele desistiu e resolveu ir embora de lá”, conta Salvator.
Após passar pela Suíça e pela França, Licco, a mulher, a sogra e o filho (que na época tinha dois anos) pediram visto para vários países. Resolveram vir para o Brasil, onde o documento saiu primeiro. A viagem de navio durou seis meses.
Em São Paulo, Licco trabalhou em companhias de automóveis e depois fundou a própria empresa metalúrgica. Tinha vários hobbies: escalar, velejar e jogar xadrez eram alguns deles.
Ele e a mulher adoravam morar aqui. “Ai de quem falasse mal do Brasil”, afirma Salvator. "Eles se consideravam brasileiros."
Fonte: http://g1.globo.com/
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