29 de junho de 2018

Os problemas lógicos do aborto

 Uma das mais brilhantes análises filosóficas sobre o tema aborto 
Como perfeitamente abordado não é uma questão religiosa mas de ética humanitária.
Além do mais, fosse a experiência emocional e psicológica das pessoas um bom critério para formular políticas públicas, a pena de morte seria autorizada sob a simples justificativa de que a comoção social seria muito menor em face da execução de um criminoso do que diante da morte de um herói nacional. Não é isso, entretanto, que o nosso senso de humanidade exige como justificação. 
Quando faleceu em 2003 aos 73 anos de idade, o filósofo inglês Bernard Williams já era considerado por vozes expressivas um dos mais relevantes pensadores do século XX. Sua abordagem dos problemas éticos para além dos esquemas filosóficos tradicionais, levando em consideração o papel das emoções, da tragédia e da inescapável complexidade da vida humana, fez dele uma das mentes mais originais da filosofia moral. 
 Mas Williams não era conhecido apenas nos meios acadêmicos. A sua elegante eloquência e personalidade marcante, unidas ao seu enfrentamento de temas polêmicos, contribuíram para torná-lo popular também fora dos ambientes universitários. 
A temática da legalização do aborto também não passou incólume à análise de Williams, sobre a qual publicou o ensaio “A lógica do aborto”, de 1977, que foi originalmente apresentado em um programa de rádio da agência BBC, na Inglaterra. 
A propósito do debate moral envolvendo o aborto, Williams atenta para o fato de que essa discussão de forma alguma pressupõe uma postura religiosa. Isso porque os argumentos em disputa passam ao largo de qualquer justificação de cunho transcendental e se apoiam em esquemas de pensamento que podem ser compartilhados por crentes e ateus. 
Em suma, isolados de toda influência religiosa, os argumentos contrários ou a favor da legalização giram em torno da problemática da definição e da inviolabilidade da vida humana. 
A respeito do primeiro eixo de discussão, Williams explica que a afirmação de que o aborto se trata, sem meias palavras, de um assassinato é o mais importante argumento daqueles que são contrários à legalização. Para essas pessoas, qualquer tentativa de formular justificativas mais sofisticadas sobre o assunto se trata de um mero mascaramento da verdadeira natureza desse ato. Por outro lado, conforme explica o autor, aqueles que rejeitam a proibição dividem-se em dois grupos. 
O primeiro deles compartilha com o argumento do assassinato a abordagem metodológica, pois também considera que o que está em jogo é uma questão de definição. Para este grupo, o que importa é refletir se o embrião ou o feto – nomenclaturas que remetem a sucessivos estágios de desenvolvimento e que serão utilizadas indistintamente neste texto – estão ou não abarcados pela proibição legal do assassinato. Isto é, se são ou não um ser humano ou uma pessoa. O segundo grupo, por outro lado, deseja se evadir do debate em torno da definição e adota uma outra estratégia argumentativa. 
No tocante à definição, a grande questão que se põe é, como dito acima, se o embrião ou o feto se trata ou não de um ser humano. Embora em outros escritos Williams problematize ainda mais essa questão, a resposta dada por ele no ensaio de 1977 é de um sonoro sim. Afinal, se o embrião é um ser vivente e não pertence a nenhuma outra espécie animal, está muito claro que ele só pode ser considerado um ser humano. 
Mas, como já pude adiantar, a questão da definição se complica se considerarmos a posição tomada por alguns no sentido de que, embora seja um ser humano, o embrião não é uma pessoa. Para este grupo, o embrião não é pessoa por não ser dotado de capacidade comunicativa, social e de uma forma complexa de consciência. Assim, na medida em que não é uma pessoa nesse sentido, a mera identificação biológica do embrião enquanto ser humano não o faria digno de especial proteção. 
O grande problema desse argumento, diz Williams, é que já que o embrião não pode ser considerado uma pessoa por não possuir as características descritas acima, o mesmo se poderia dizer, por exemplo, de um recém-nascido em seus primeiros dias de vida, de um indivíduo portador de uma deficiência cerebral grave ou de um idoso senil. Segundo esse raciocínio, todos esses seres humanos seriam considerados sub-pessoas ou ex-pessoas e, nessa condição, a sociedade também estaria autorizada a descartá-los. O infanticídio, a eugenia e a eutanásia estariam autorizados pelo mesmo raciocínio que autorizaria o aborto. 
Fonte: GAZETADOPOVO.COM.BR/O aborto

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